Quem sai aos seus não degenera

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Era sábado de manhã e eu liguei pra ele. Depois de me explicar todo o procedimento de instalação de um bujão de gás, pelo telefone, ele perguntou surpreso: "E você comprou um bujão?". Respondi que sim, muito orgulhosa de mim mesma: "As pessoas precisam evoluir, pai?". Ele respondeu sorrindo: "Muito bem". Acho que também ficou orgulhoso de mim. Depois de anos de uma comunicação ruidosa, conseguimos, se não falar a mesma língua, ao menos, nos fazer entender. O tempo tem esse poder de aperfeiçoar as relações verdadeiras. Acho que hoje, finalmente, consigo entender o meu pai. Porque, pensando bem, não deve ter sido fácil pra ele quando eu nasci. Não por inexperiência com crianças, meu irmão já existia, por inexperiência com meninas. Meu pai é o filho mais velho de uma família de sete irmãos, todos homens. Durante algum tempo, conviveu com a mãe, as tias e avós. Saiu cedo de casa pra estudar e trabalhar. Fez faculdade, morava numa república de estudantes. Apesar de responsável, diz a lenda que gostava da boemia, era o maior pé-de-valsa da região. Aí vieram as namoradinhas, até conhecer minha mãe. Foi quando fez promessa pra casar com ela. Meu pai conviveu com mulheres, mulheres “formadas”. Sobre meninas ele não entendia nada. Quando nasci, uma bebê gordinha, que dormia mais que tudo, ele deve ter ficado se perguntando o que fazer com aquele ser estranho. Que botão poderia apertar sem que eu me quebrasse. Ele sempre foi aquele pai que ficava na torcida dos jogos escolares, na platéia, aplaudindo, todo orgulhoso. Mas herdou, por motivos que a psicologia tenta explicar, uma falta de jeito singular em demonstrar o que sente. Por azar, ou sorte, ou até mesmo por culpa dele, eu saí essa pessoa assim, teimosa, cheia de opinião, prática, metida a independente (desde cedo), questionadora, inteligente (sem falsa modéstia), abusada e com essa falta de jeito singular em demonstrar o que sinto. Como minha mãe sempre fala: dois bicudos não se beijam. Hoje penso no quanto deve ter sido difícil pro meu pai, me ver ali, indo e vindo, acertando, errando, quebrando a cara, crescendo, sem que ele pudesse interferir muito. Acho que desejou muitas vezes que eu tivesse continuado uma bebê gordinha e dorminhoca. Era mais fácil. Só alimentar, embalar no colo, que ficava tudo bem. Quantas coisas ele deve ter pensando e calado. Quantas coisas ele deve ter dito sem pensar. O mesmo valeu pra mim. Se meu pai não sabia como chegar até mim, eu do meu lado, cuidei muitas vezes em colocar alguns tijolos no muro que nos separava. O tempo passou, e eu virei mulher. A psicologia diz que mulheres que não tem um relação bem resolvida com o pai tendem a ter relações amorosas conturbadas. Pensei: isso explica muita coisa. Mas por essas ironias da vida, que nos leva pelos caminhos mais estranhos, meu pai protagonizou o gesto de amor mais bonito que presenciei em toda a vida. Ele segurou a barra de uma família inteira, sozinho. Ele cuidou. Ele vigiou. Ele assumiu a responsabilidade pra si. E segurou a onda, pra proteger três filhos da dor, enquanto cuidava em lutar pela vida da mulher com quem ele, um dia, prometera casar. Naquele dia, quando vi meu pai, num quarto de hospital, abraçado as pernas da minha mãe, sem caber em si de tanta felicidade por ela estar se recuperando, eu pensei que seria feliz se um dia encontrasse alguém que me amasse daquele jeito. Por essas ironias da vida, meu pai hoje chora por tudo. Igual a mim. A dor serviu pra nos aproximar de alguma maneira. Hoje, vejo o quanto ele abdicou de si e de muitos dos seus preceitos pela nossa família. Tanto que me apoiou, ainda que silenciosamente, em momentos nos quais o desapontei. Acho que sabia, sempre soube, que eu era capaz de aprender com meus erros, e que minha consciência sempre fora castigo suficiente, maior que qualquer sermão. A ele caberia somente estar ali, pra quando eu precisasse. Porque mais cedo, ou mais tarde, eu sempre preciso. Ele evoluiu. Hoje, se derrete todo quando Lívia lhe chama de "vovô". Ela é a segunda menina na vida dele. O pessoal lá de casa sempre faz piada. Eu acho graça. É que me alegra saber que esse "ser" sempre esteve ali, ao meu lado, ainda que, em alguns momentos, eu não conseguisse enxergá-lo.
A você, todo o meu amor, sempre.

2 comentários:

maria da guia disse...

parabéns katinha!lindo o texto.Com certeza ele vai gostar e chorar.È bom relembrar certos fatos para darmos mais valor àqueles que estão à nossa volta.bjos,amo vc.p

Gilvan disse...

Você gosta mesmo é de me ver chorar. A brincadeira da promessa já vai longe, agora vc. registra nos anais.Vendo este filme (retrospectiva) eu te digo, faria tudo outra vez se preciso fosse(com mais diplomacia, é claro). Sou muito feliz por ter vocês e por tudo que DEUS me deu. Esteja sempre antenada e siga em frente. Vou continuar Rezando, Chorando (de felicidades) e Torcendo como sempre. Sou seu Fan Nº1. TE AMO.